200 anos da Doutrina Monroe: como os EUA transformaram a América Latina em seu quintal
Há exatos 200 anos, o presidente norte-americano James Monroe pronunciava no Congresso dos EUA as palavras que marcariam para sempre o destino da América Latina: "América para os americanos". Mas o que parecia ser um gesto de solidariedade com os países recém-independentes se transformaria na justificativa para duas décadas de intervenções, invasões e controle imperial sobre nosso continente.
A chamada Doutrina Monroe, apresentada em 2 de dezembro de 1823, alertava as potências europeias para que permanecessem fora do continente americano. "Os continentes americanos, pela condição de liberdade e independência que assumiram e mantêm, não deverão doravante ser considerados sujeitos de futura colonização por qualquer potência europeia", declarou Monroe.
Do protetor ao dominador
Inicialmente, os países latino-americanos celebraram a posição norte-americana. Simón Bolívar, herói da independência sul-americana, chegou a declarar em 1824: "A Inglaterra e os Estados Unidos nos protegem". No México, o ministro dos Negócios Estrangeiros queria que os EUA fornecessem recursos "para apoiar a independência e a liberdade".
Mas a realidade seria bem diferente. Como explica o historiador Veremundo Carrillo, especialista em relações pan-americanas, "os EUA se estabeleceram como a polícia americana com o pretexto de proteger o continente". O resultado? Trinta intervenções em países latino-americanos ao longo dos séculos seguintes.
A primeira grande traição aos princípios originais veio com o presidente James K. Polk, que reinterpretou a doutrina "como uma política de expansão dos EUA". Washington invadiu o México, forçando o país a ceder 55% de seu território em 1848. Também ocupou em vários momentos a República Dominicana e o Panamá.
O imperialismo disfarçado de proteção
O caso mais emblemático da hipocrisia norte-americana foi a intervenção francesa no México (1862-1867), quando Napoleão III estabeleceu um império com apoio dos conservadores mexicanos. Os EUA, que deveriam defender o continente segundo sua própria doutrina, não moveram uma palha para ajudar o governo liberal de Benito Juárez.
Foi Theodore Roosevelt quem deu o toque final na perversão da doutrina original: estabeleceu que os Estados Unidos poderiam intervir nos assuntos internos de qualquer nação latino-americana se esta "cometesse crimes flagrantes". Na prática, isso significava que Washington se tornava juiz, júri e executor de toda a América Latina.
O quintal dos EUA
Durante a Guerra Fria, diferentes presidentes norte-americanos "invocaram o perigo comunista" para justificar suas numerosas intervenções na América Latina. Como observa Carrillo, "se fala de muitas doutrinas: a Truman, a Kennedy, a Johnson. Mas numa leitura mais panorâmica, são todas reinterpretações da Doutrina Monroe".
O resultado dessa política imperial foi a transformação da América Latina no que passou a ser chamado de "quintal" de Washington. Golpes militares, intervenções econômicas, invasões diretas, tudo foi justificado em nome da proteção do hemisfério ocidental.
O retorno da velha doutrina
Duzentos anos depois, a Doutrina Monroe volta a ser mencionada explicitamente pela Casa Branca. No início de dezembro, o governo dos Estados Unidos divulgou sua nova Estratégia de Segurança Nacional, que cita nominalmente a doutrina e afirma que Washington deve "retomar" seus princípios no relacionamento com a América Latina.
O documento sustenta que "ameaças externas" no hemisfério, como a influência econômica da China, exigem uma postura mais ativa dos EUA. Donald Trump reforçou esse sinal ao classificar a Doutrina Monroe como "fundamental" para a história do país.
Para os povos da América Latina, que conhecem bem o peso do imperialismo norte-americano, essa retomada da velha doutrina representa um alerta vermelho. Como bem define o historiador Carrillo, os EUA continuam sendo "uma república imperial, com valores do republicanismo democrático, que muitas vezes tem agido com base no imperialismo mais clássico, com interesses puramente comerciais".
A história nos ensina que quando Washington fala em "proteger" a América Latina, é melhor os povos se prepararem para resistir.